Nosso Senhor fundou uma Igreja hierárquica, com Papa e Bispos
a quem se deve obedecer. Esses hierarcas não são donos ou
proprietários da Igreja. São administradores; e o que deles a Igreja
exige é que sejam fiéis transmissores (Concílio Vaticano I – Denz.
3070). Seu poder é grande, mas não absoluto ou sem limites. E o
fiel pode muito bem usar do direito – e da obrigação – de
comparação entre o que se lhe ensina hoje e o que foi sempre
ensinado; conforme proclama o Apóstolo São Paulo: “Mas, ainda
que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um Evangelho
diferente daquele que vos tenho anunciado, seja anátema” (Gal. 1,
8). A Igreja quando manda obedecer não o faz incondicionalmente,
mas dá ao fiel o direito de analisar, comparar e resistir, se for
preciso, como o disse e fez São Paulo com relação a São Pedro,
primeiro Papa (Cfr. Gal. 2, 11-14 e Suma Teológica II-II, q. 33, a.
IV).
Quando os tempos são normais e as autoridades nos transmitem a
verdadeira doutrina tradicional, não há porque não obedecer, como
o fizeram os santos de tais épocas. Mas se não, eles sabiam resistir e
arrostar todas as pressões, arbitrariedades e abusos de poder.
O célebre hagiógrafo católico Dom Guéranger assim resume esta
posição, comentando a resistência oposta pelos fiéis às autoridades
que patrocinaram o erro, no tempo da heresia do Bispo Nestório:
“Quando o pastor se transforma em lobo, é ao rebanho que, em
primeiro lugar, cabe defender-se. Normalmente, sem dúvida, a
doutrina desce dos Bispos para o povo fiel, e os súditos, no domínio
da Fé, não devem julgar seus chefes. Mas há, no tesouro da
revelação, pontos essenciais, que todo cristão, em vista de seu
próprio título de cristão, necessariamente conhece e
obrigatoriamente há de defender. O princípio não muda, quer se
trate de crença ou procedimento, de moral ou de dogma. (...) Os
verdadeiros fiéis são os homens que extraem de seu Batismo, em
tais circunstâncias, a inspiração de uma linha de conduta; não os
pusilânimes que, sob pretexto especioso de submissão aos poderes
estabelecidos, esperam, para afugentar o inimigo, ou para se opor
a suas empresas, um programa, que não é necessário, que não lhes
deve ser dado” (L’Année Liturgique, p. 340 ss).
Evidentemente, viver em tempos de crise, como os que nós
vivemos, é muito penoso e exige-se então, de cada um, verdadeiro
heroísmo. É muito fácil defender causas já vitoriosas. O difícil é
trabalhar arduamente pela vitória de uma causa justa. É muito fácil
ser o corajoso adepto de uma verdade já vencedora. O difícil é
aderir à vontade quando ela está perseguida e humilhada. É mais
cômodo juntar-se às fileiras do exército vencedor. É mais agradável
seguir a maioria, estar bem com quem está no poder. Mas é
tremendamente incômodo lutar pela verdade quando até as
autoridades patrocinam a causa contrária e favorecem o erro.
Hoje, quando a história já deu ganho de causa a Jesus Cristo,
contra Anás e Caifás, não há quem julgue que, se vivesse naquele
tempo, teria sido um fiel discípulo do Salvador e jamais teria
tomado o partido de Caifás. Mas, teriam esses mesmos coragem de
enfrentar as autoridades oficiais da religião verdadeira de então?
Caifás era o Sumo Pontífice, cercado de outros representantes
oficiais do poder de Deus. E nós vemos pelo Evangelho a "pressão"
que essas autoridades faziam sobre os que queriam seguir a Jesus.
São João no seu Evangelho (9, 22) narra aquela passagem dos pais
do cego curado por Cristo negando-se a confessar o milagre porque
os judeus tinham decidido expulsar quem aderisse a Jesus. É difícil
ficar com a verdade até contra a autoridade. Por isso Jesus ficou
com bem poucos amigos, porque a maioria não suportou a pressão e
o peso da autoridade religiosa e preferiu ficar do lado do Sumo
Pontífice Caifás e condenar a Jesus como impostor, ladrão e
agitador do povo.
Hoje, séculos depois, quando vemos na História da Igreja (Cfr.
Denz.-Sch. 561 e 563) que o Papa Honório I favoreceu a heresia e
por isso foi condenado pelo seu sucessor Papa São Leão II e pelo VI
Concílio Ecumênico por estar em desacordo com a tradição da
Igreja, fica fácil dizer que nós, naquele tempo, também estaríamos
do lado de São Máximo e São Sofrônio, que resistiram ao Papa e
foram canonizados, isto é, colocados pela Igreja como modelo de
fidelidade para todos os cristãos. Mas se defendêssemos o "dogma"
da obediência incondicional ao Papa, como muitos hoje o fazem,
estaríamos sim do lado dos hereges.
Assim também no confronto entre o Papa Libério e Santo
Atanásio, este, defensor da ortodoxia e por isso expulso de sua
igreja, e aquele, o Papa, que assinou uma fórmula ambígua e
heretizante, ao sabor dos hereges e excomungou Atanásio porque
este se recusava acompanhá-lo na sua defecção. O Papa Libério
então, em nome da paz e da concórdia, declarou-se em união com
todos os Bispos, inclusive os semi-arianos, menos com Atanásio, ao
qual proclamou alheio à sua comunhão e à comunhão da Igreja
Romana (Cfr. Denz.-Sch. 138). Santo Atanásio, por defender a sã
doutrina, foi condenado como perturbador da comunhão eclesial!
Hoje, depois que a Igreja canonizou Santo Atanásio como ínclito
defensor da Fé e da Tradição, fica fácil dizer que estavam certos
aqueles poucos que ficaram ao lado do Santo e foram expulsos das
igrejas oficiais, sendo obrigados a se reunirem nos desertos debaixo
de sol e chuva, mas conservando a fé intacta e respondendo aos
hereges: vocês têm os templos, nós temos a Fé! (Cfr. São Basílio,
ep. 242, apud Cardeal Newman - Arians of the Fourth Century,
apêndice V). Mas, como ficariam, se vivessem naquele tempo,
aqueles que põem na obediência o seu universo mental?
Evidentemente do lado mais fácil e cômodo da autoridade, e da
heresia por ela favorecida.
Hoje, a história da Revolução Francesa nos ensina quão covardes
foram aqueles padres e bispos que, para conservarem as suas igrejas
e seus cargos, aceitaram um compromisso com os dominantes e
fizeram o juramento revolucionário, e quão heróicos foram aqueles
sacerdotes que a isso se recusaram e foram expulsos, tendo que
atender ao povo fiel nos paióis, escondidos e perseguidos.
De nossa parte, temos a plena convicção de que o melhor serviço
que podemos prestar à Igreja, ao Papa, ao Bispo e ao povo cristão é
defendermos a tradição, a doutrina que a Igreja sempre ensinou,
mesmo à custa de sermos perseguidos, injuriados e até expulsos das
igrejas. Podem nos tirar os templos, mas jamais a nossa Fé! Assim o
dizemos, confiados unicamente na Graça de Deus.
A história nos dará razão! E, mais do que o tribunal da história, o
tribunal de Deus, para o qual apelamos! Que Nossa Senhora nos dê coragem e perseverança.
Fonte: Rifan, Pe Fernando Arêas. Quer agrade, quer desagrade. Páginas 46 a 49.
Nenhum comentário:
Postar um comentário