Rene Guenon, metafísico e esoterista francês. |
Grandeza e debilidade de Rene
Guenon - Cardeal Jean Danielou
Tradução e resumo do capítulo IX da obra "O mistério da História" de Danielou.
A morte de Rene Guenon chamou-nos
a atenção sobre uma obra das mais significativas de nossos dias, pois se
constitui fora da mentalidade moderna e do mundo intelectual de nosso tempo.
Guenon soube livrar-se dos prejuízos de nossos dias e elaborou sua obra com o
inflexível rigor da solidão. Ele tocou nos problemas da civilização técnica e
das ameaças que implica.
Uma das primeiras verdades que a
obra de Guenon traz é a reabilitação do conhecimento simbólico frente ao
conhecimento científico. Para um homem formado na química ou na astronomia é
absurdo voltar a astrologia ou a alquimia. Para o mesmo todo o espírito moderno
é um desvio e que há mais verdades essenciais na astrologia com todas suas
infantilidades que na astronomia com sua técnica. Toda a ciência pode aumentar
as dimensões da jaula material onde o homem está: mas nunca pode libertá-lo
dessa jaula. A intuição intelectual que podemos ter a partir das realidades do
mundo material nos leva a captar uma realidade que as supera e que tem um valor
mas vital.
Entenda-se o que queremos dizer:
Guenon não quer a volta a astrologia ou alquimia em sua forma vulgar de pseudociência.
Trata-se de entender que os metais e astros nos interessam mas pelo seu
significado que por sua composição ou uso que deles possamos fazer. Podemos considerar uma esmeralda como um bem
comercializável: é o que faz o joalheiro e comerciante. Podemos considerá-la do
ponto de vista de suas propriedades materiais: é o que faz o químico. Mas o que
de mais real tem a esmeralda é sua cor viva e dureza, e isso é o que o
alquimista capta.
A astronomia não faz mais que
informar sobre a mecânica dos astros: fazer isso significa ficar na superfície
das coisas. O mundo estelar está prenhe de sentido. São estes sentidos e
significados que cabe descobrir: Guenon compreendeu que os movimentos
estelares mas que arquétipos dos
movimentos terrestres, são sinais de realidades de outra ordem. Mircea Eliade
já observava que os povos antigos viam no céu visível sinais de uma hierofania
através da qual se manifesta o mundo espiritual. Isso é o oposto de uma
astrologia vulgar que crê estar a existência humana condicionada pelos astros.
Submete a mesma crítica a
geometria e a matemática: as figuras geométricas não interessam pelas relações
numéricas mas pelo valor qualitativo da figuração simbólica. Junto a ciência
dos números se acha a simbólica dos números: não sem razão o 7 e o 40
desempenham um papel fundante na simbólica bíblica, constituindo uma verdadeira
linguagem. E esta linguagem não é convencional mas sim baseada na natureza das
coisas, o que nos conduz a uma conclusão : as tradições por mais diversas que
sejam nos apresentam símbolos idênticos ou semelhantes. A que atribuir esta permanência? Não é fácil
admitir que isso se deva a uma transmissão de uma tradição original como quer
Guenon. É mais fácil concluir com Mircea Eliade que estes símbolos se fundam na
natureza mesma das coisas e que os homens dão idênticos significados aos mesmos
objetos.
Guenon faz entrar a simbólica
cristã na simbólica tradicional. Relaciona a simbólica da cruz na Índia e no
cristianismo. Observa que o número dos doze apóstolos e um símbolo que remete
ao Zodíaco de doze constelações. A veste branca do Papa atesta o valor do
branco em todas as religiões. Existem de fato analogias indubitáveis. Analogias
que levam Guenon a ver no cristianismo nada mais que uma das formas da tradição
primordial: ele se interessa pelo cristianismo pelo que tem de comum com outras
tradições. E desde aqui não é possível mais segui-lo: o cristianismo reconhece
uma simbólica natural que se acha relacionada com a religião cósmica, quer
dizer, com essa revelação que Deus faz aos homens através do mundo visível.
O cristianismo é muito diferente
disso: é a irrupção de Deus na história, um fato novo. A cruz nele não tem mero
valor simbólico mas que Cristo foi imolado nela. Como o patíbulo onde Cristo
foi imolado tinha forma de cruz a liturgia da Igreja carregou- a de todo
simbolismo natural para significar que ela indicava as 4 dimensões e o eixo do
mundo e que a redenção tem valor universal. Porém estes simbolismos tem
importância secundária frente aos fatos históricos. E é esta importância do
cristianismo como novidade absoluta que desconhece Guenon.
Nada tem isso de estranho já que
a condenação de toda a história, forma parte essencial de seu pensamento.
Experimentamos uma grande satisfação quando vemos Guenon condenar, com uma
violência que não tem igual, as ideologias modernas do progresso, da evolução e
do historicismo. Estamos de acordo com ele em pensar que é absurdo crer que o
desenvolvimento da ciência possa levar a uma transformação qualitativa da
humanidade. Guenon porém vai mais longe
e vê decadência em tudo. Decadência que se acentua a partir do século 16. A
ciência enquanto tal, e não apenas o uso culpável que dela se possa fazer, não
há de arrastar o mundo a pior das catástrofes, na medida em que ganha
importância maior que a da Sabedoria?
É preciso reconhecer o alcance da
crítica tão valente que Guenon faz dos prejuízos nefastos do mundo moderno.
Pelo fato de esperar uma salvação da ciência o homem se aliena dos únicos
verdadeiros meios de salvação. Os que alimentam essa ilusão, chamam-se marxistas
e liberais, são os verdadeiros responsáveis pela miséria do mundo moderno. Não
há dúvida que as noções de progresso científico se acham desprovidas de todo
sentido espiritual. Não há dúvida que a hipertrofia da ciência materialista e
moderna afasta o homem moderno da intuição intelectual dos valores metafísicos.
Não há dúvida que no plano natural, a passagem do tempo não traz ao homem nada
de essencial e que só os princípios metafísicos constituem o essencial e estes
princípios são imutáveis.
Não há nada de essencial que
possa ser novo na ordem natural. Porém não sucede o mesmo no plano cristão.
Pois neste nos encontramos na presença de fatos que mudam qualitativamente a
existência humana e que constituem por isso uma novidade absoluta. Basta ler São
Paulo para ver com que freqüência se repetem as expressões de “nova criação” e
“homem novo”. Existem portanto elementos
que não possuía a tradição anterior que mostra uma promoção espiritual, que
corresponde ao passo que se dá no conhecimento de Deus e da revelação da sua
via íntima por Jesus Cristo. Em efeito só no cristianismo se dá a História.
Isto foi o que Guenon não viu: para ele o cristianismo não é realidade única. A
prova disso é que ele, ao fim da vida foi parar no Islã.
Isto nos conduz ao último aspecto
de seu pensamento, o que se refere às relações entre ciência, sabedoria e fé. Uma
vez mais chama a atenção da parte positiva de seu pensamento: contra o
relativismo e pragmatismo ele restaura o valor do pensamento especulativo. A
realidade suprema é o mundo das idéias eternas cujo reflexo são as coisas
sensíveis. A atividade mais elevada do homem é a intuição das essências. Só o
conhecimento destas idéias eternas pode nos fazer organizar as coisas com
sabedoria. Quem possui este conhecimento possui a autoridade espiritual. Guenon
restitui a seu pleno valor a concepção hierárquica da sociedade que choca com o
dogma moderno da democracia e do voto universal. A autoridade espiritual se
compõe de quem possui a Tradição e subsiste de forma máxima no “rei do mundo”
que é seu arquétipo ideal. Essa autoridade se encarna visivelmente em certos
personagens. O Papa representa para Guenon uma destas autoridades. Ele defende
esse aspecto do catolicismo e vê, no protestantismo, nada mais que uma
perversão do autêntico cristianismo.
Agora bem: de que tradição são
depositárias as autoridades espirituais? Só da tradição dos princípios
intelectuais. Estes princípios são, sobretudo, os da filosofia da Índia e do
Vedanta ao que Guenon consagra sua primeira obra. Nela fala de verdade suprema.
Filosoficamente isso é inquietante. Pois a filosofia da Índia nos deixa na
incerteza de dados como a transcendência de Deus, da imortalidade da alma, da
criação. O que choca ainda mais é que a verdade suprema é a verdade filosófica.
As grandes religiões monoteísticas seriam apenas um compromisso entre as
verdades filosóficas e as necessidades afetivas dos homens que exige que eles
tenham misticismos e liturgias. É esta inversão da relação que une metafísica e
revelação cristã que constitui o erro capital de Guenon.
Aqui é que se insere o problema
de sua obra que é o esoterismo. Por esoterismo podemos entender muitas coisas:
podemos considerar no interior de uma religião existem coisas inteiramente
distintas. Por uma parte se pode considerar que no interior de uma religião
existem coisas que não podem ser comunicadas, sem faltar com a prudência, aos
principiantes. Tal era a explicação do livro de Cantares no Judaísmo; tal é a
via mística no cristianismo. Porém em um ou outro caso não se trata de
doutrinas diferentes senão de aprofundamento na mesma doutrina. Para São Paulo
a gnose nada mais é que aprofundar a fé. Nada é mais contrário ao cristianismo
que a noção de uma fé de primeira e de segunda categoria. O batismo é que
constitui a iniciação. O batizado não precisará receber uma segunda iniciação
para conhecer um sentido secreto dos ritos e dos dogmas.
Porém o esoterismo tem um segundo
sentido, que é o assumido por Guenon: consiste em dizer que além da diversidade
das religiões, existe uma doutrina oculta, que é comum e cujo saber pertence
apenas aos iniciados. Existe uma doutrina secreta diferente da doutrina pública
ou exotérica. E esta doutrina não é que ensina o catecismo. É outra doutrina
cuja transcrição simbólica são os dogmas, mas é preciso ser iniciado para saber
seu sentido oculto. Para Guenon há uma oposição entre religião e sabedoria que
seria a doutrina oculta. Para ele só tal doutrina nos pode dar a salvação e não
a figura de Cristo.
A obra de Guenon é, a um tempo,
importante e decepcionante. Nos atrai por que denuncia Oe erros modernos; mas
se passamos ao pensamento positivo de Guenon nos deparamos com algo
incompatível com o cristianismo pois nega a essência da fé cristã: o caráter
privilegiado da ressurreição de Jesus Cristo.
Texto de grande valia, descontando-se os diversos erros de digitação e gramaticais.
ResponderExcluirO texto é bom. Só que nesta parte ele escorrega um pouco:
ResponderExcluir"O que choca ainda mais é que a verdade suprema é a verdade filosófica. As grandes religiões monoteístas seriam apenas um compromisso entre as verdades filosóficas e as necessidades afetivas dos homens que exige que eles tenham misticismos e liturgias. É esta inversão da relação que une metafísica e revelação cristã que constitui o erro capital de Guénon."
Na verdade, Guénon desprezava os filósofos. O que ele estranhamente chamava de "metafísica" não tem nada a ver com filosofia, mas sim com um conhecimento intuitivo, o equivalente da "libertação" (nirvana) do hinduísmo e do budismo.
Esse conhecimento intuitivo e supra-racional, segundo Guénon e os demais autores perenialistas, seria o "núcleo" por trás de todas as grandes religiões e tradições espirituais da humanidade: judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo, budismo, taoísmo, etc.
Desse modo, as religiões/tradições convergem no "esoterismo" (o lado interior, que diz respeito a esse conhecimento intuitivo), e afastam-se no "exoterismo" (o lado exterior, que compreende a teologia, o dogma e as respectivas liturgias).
O grande problema dessa concepção - e nesse ponto concordo com o texto - é que o cristianismo afirma-se como algo especial e único. Enquanto o islamismo fala de diversos profetas, trazendo sempre a mesma mensagem, porém com "leis" diferentes, o cristianismo fala de uma intervenção única de Deus na história, com a encarnação do Verbo, um fenômeno que não pode ser reduzido a qualquer outra coisa análoga no hinduísmo e em outras tradições.
Além disso, o cristianismo não pode admitir dentro dele aquela distinção entre "exoterismo" e "esoterismo". Nesse aspecto a obra de Sto. Irineu é muito importante: os Apóstolos proclamaram toda a verdade publicamente na Escritura e na tradição da Igreja.
Realmente, o cardeal parece só ter entendido uma parte do pensamento de Guénon. Verdade filosófica não passa de uma contradição de termos, e ele não tem a menor noção das doutrinas hindus, como se pode notar quando diz que "a filosofia da Índia nos deixa na incerteza de dados como a transcendência de Deus, da imortalidade da alma, da criação". Chega a parecer má-fé a tentativa de desqualificar Guénon como pensador cristão.
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