quarta-feira, 13 de julho de 2022

Por que o "marxismo" cultural é capitalismo?


 




A direita conservadora costuma fazer uma enorme confusão quando o tema é família e marxismo. A compreensão dominante na cena conservadora é que a nova esquerda é marxista e que o marxismo propugnava a destruição da família patriarcal. A raiz da confusão é a leitura superficial que fazem do livro de Engels sobre a Origem da Família, da Propriedade e do Estado, no qual ele postula que foi o desenvolvimento da propriedade privada que criou o patriarcado – um chefe com poder sobre os membros da gens ou clã – e que essa instituição estabeleceu o primeiro antagonismo de classes, entre homem e mulher, e por tabela o Estado. Engels considera, erradamente, que antes do estabelecimento do patriarcado teria existido um matriarcado e que nele, vigoraria o comunismo de bens e de relações sexuais: todos os homens do clã seriam de todas as mulheres e vice versa, sendo os filhos daí gerados, responsabilidade de todo o clã. Nesta forma de família a parentela é estabelecida pela linha materna, cabendo as matronas definir o lugar e função de cada membro do clã além de distribuir os bens como alimentos e campos de cultivo. Pois bem: essa tese jamais foi confirmada pelos antropólogos ou historiadores embora tenha sido defendida por Bachofen e Frazer, no século 19, que pegaram casos isolados de tribos do Havaí e Polinésia para generalizar que todos os povos passaram por um estágio de matriarcado para depois transitarem para o patriarcado. Hoje os antropólogos concordam que não existem provas consistentes de sociedades francamente matriarcais.


O erro dos conservadores é ignorar que o marxismo nunca adotou como práxis a luta contra o patriarcado mas sim a luta de classes, meio para debelar uma revolução que estabeleça uma propriedade coletiva dos meios de produção, que ficariam sob a regência do estado e não dum matriarcado. É verdade que Engels dizia, na obra supra citada, que “um lar sob direção feminina é um lar comunista” mas tomando em consideração a estrutura social de tribos polinésias em que uma suposta gens oriunda duma matriarca tinha bens em comum. Também é verdade que para o marxismo o fim do patriarcado virá com o fim do capitalismo: mas o foco nunca foi destruir o primeiro e sim o segundo para acabar com o primeiro. O marxismo nunca teve nem terá como foco a destruição duma estrutura familiar qualquer pois para Marx e Engels essas estruturas são produto do modo de produção capitalista e não realidades autônomas que poderiam deixar de existir mesmo dentro duma sociedade e economia capitalista.


A nova esquerda, nos anos 60, inverteu essa equação pois ela espera destruir o capitalismo matando a família patriarcal, nuclear, burguesa (que aliás são conceitos diferentes e que são confundidos pelos autores da esquerda). Marcuse, autor neomarxista, na obra Eros e Civilização, é quem vai avançar na tese de que a liberação da libido seria uma frente de luta contra a sociedade do capital. Assim ele entende que destruída a família patriarcal que reprime a libido, surgiria uma nova forma de sociedade onde o corpo do sujeito sexualizado daria lugar a novas relações de trabalho, abrindo caminho para o fim do capitalismo.


Acontece que o capitalismo já destruiu a família patriarcal que consistia no pai de família controlando os meios de produção; a industrialização acabou com a oficina familiar; o que restou do patriarcado foram alguns dispositivos jurídicos e uma cultura que diferencia o papel sexual masculino e feminino; para eliminar de vez esses resquícios o capitalismo soube absorver a proposta neomarxista desenvolvendo novos nichos de mercado a partir do Maio de 68, movimento claramente influenciado pelas teses marcusianas, através da indústria pornográfica, da erotização da cena musical internacional, etc. A nova ênfase cultural no desejo individual – proporcionada pelo marcusianismo - permitiu realocar capital em produção voltada a demanda e a diversificação de produtos, atendendo ao gosto do cliente, dando vazão, nos anos 70, a uma reestruturação do sistema capitalista mantendo-o como modelo vigente face a concorrência do socialismo soviético, cada vez mais estagnado. Nesse contexto é que entra a segunda onda do feminismo que assumiu a tese dum matriarcado nas origens da humanidade mas dentro dum enquadramento liberalizante: o objetivo não era recriar os velhos clãs matriarcais mas usar a tese para propagar a idéia de que não há uma natureza feminina ligada a cumprir uma missão como esposa e rainha do lar que era o valor dominante nos anos 50/60. Essa segunda onda visava liberar a mulher do esposo, pelo divórcio, da casa, pela inserção no mercado de trabalho, da maternidade, pelo uso de contraceptivos e pelo recurso ao aborto para dar vazão a liberdade sexual. Isso ajudou decisivamente a modernização técnica e produtiva do capitalismo dos anos 70 pois houve uma corrida ao corte de custos com substituição de fontes de mão de obra remunerada mais cara por outras mais baratas com destaque para a feminização da força de trabalho remunerado. Tanto é verdade que em 1940, as mulheres casadas que viviam com os maridos e trabalhavam por salário somavam menos de 14% do total da população feminina dos EUA. Em 1980, eram mais da metade.


Agora os novos formatos de “família” defendidos pelos partidos de esquerda não estão trazendo nenhum novo formato de propriedade capaz de desafiar o modo de produção capitalista: boa parte da militância lgbt é para que duplas gays possam se casar no civil a fim de que possam ter seus direitos patrimoniais garantidos. E não faltam pessoas de direita que defendam um contrato civil entre os envolvidos para assegurar seus direitos de propriedade individual.


Num futuro não muito distante, todo esse experimento em torno de novos arranjos “familiares” - mães solo, “famílias” formadas por filhos de pais diferentes, trisais, duplas lgbt – pode criar um caldo confuso em que será praticamente impossível determinar um herdeiro inconteste do patrimônio familiar, mas isso de per si não gera um contexto propício a retomada da propriedade coletiva, favorecendo o comunismo. Pelo contrário isso estabelece de vez a soberania do indivíduo contra o estado, a religião, a sociedade, a quem caberá decidir, em última instância, o que é ou não família.

Um comentário:

  1. Na realidade, a tese de Engels que as sociedades originárias eram matriarcais é falsa e foi muito bem desmentida pelo sociólogo Steven Goldberg, no livro "Why Men Rule?", disponível aqui em PDF: https://ardhindie.com/pdf/why-men-rule

    O que os comunistas sempre defenderam foi a igualdade dos sexos, e na URSS tentaram fracassadamente implementar projetos com esse objetivo. Tentaram, inclusive, expropriar as crianças dos pais, de modo a forjar-lhes o caráter revolucionário. Isso foi bem desenvolvido em "Mulher, Estado e Revolução" - https://livrariataverna.com.br/sociologia/1617-mulher-estado-e-revolucao-wendy-goldman-9788575593646.html

    O liberalismo econômico, de fato, promoveu a separação da autoridade do homem sobre a mulher no momento em que ambos perderam a soberania para a fábrica. De fato, foi um duro golpe, mas não golpe definitivo contra a família tradicional, que ainda resiste em pequenos grupos, a maioria dos quais católicos. Mas a idéia dos cabalistas é inverter todas as soberanias, e fazer um mundo mais matriarcal possível, ainda que isso pareça impossível, como tudo que está sendo implementado.

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