Nos 50 anos de fundação da FSSPX, obra criada por Dom Marcel Lefebvre para preservar a missa de sempre e o ensino imutável da Igreja contra as novidades instauradas no seio dela pelas reformas do Vaticano II, era de se esperar que setores progressistas e neoconservadores fizessem uma campanha de difamação do seu legado e figura. Neste sentido o site “O Catequista” que tem como marca uma “nova evangelização”, através duma linguagem irreverente – exemplo disso são artigos que exibem os seguintes títulos: “Periquita, se eu não der, vou encalhar?” - publicou um artigo injurioso afirmando que Dom Marcel foi um “rebelde insolente, tal qual Lutero”, escrito pela pena de Daniel Fernandes, sujeito que se define como um alto intelectual o que nos deixa deveras espantados pois não é do feitio de intelectuais associar-se a uma choldra que trata as coisas sagradas com um linguajar de bordel.
No mais além do site em tela, o canal “Santa Carona”, que se vale da mesma barafunda do “Catequista”, fez a divulgação do artigo o que aponta para uma articulação nos bastidores. Lembramos que nos últimos dias um novo escândalo envolvendo a figura de João Paulo II - tido como exemplo por estes nichos conservadores que o enxergam como o Papa que uniu a tradição com a novidade, a síntese do impossível já condenada na Pascendi de São Pio X com o nome de modernismo que consiste na heresia de reinterpretar os dogmas da fé com base nas inovações modernas no campo do pensamento teológico e filosófico - veio a tona mostrando que ele promoveu McCarrick a arcebispo de Washinton D.C. mesmo sabendo de sua má conduta sexual. Isto põe em xeque sua canonização feita a toque de caixa para viabilizar o projeto de um novo modelo de Igreja sob os auspícios do Vaticano II e da abertura ao mundo – que o site “Catequista” sabe encarnar bem ao usar a mixórdia do mundanismo para tratar de coisas divinas que só podem ser comunicadas corretamente com uma linguagem grave e solene. Evidente que interessa a tais grupos desviar a atenção do público católico de mais um grave escândalo que põe em questão os pontificados pós Vaticano II levando-os a crer que o problema está nos lefebvristas que sempre se levantaram para denunciar o arruinamento da fé e dos costumes por obra dos clérigos que deviam defendê-la.
Vamos ao artigo e a sua refutação. Em tempo é preciso lembrar que o seu articulista é formado em história mas, desconsiderando a metodologia comezinha para qualquer historiador, passou por cima dos fatos, não consultou as fontes e preferiu montar uma narrativa fantasiosa que não encontra estofo nos documentos primários.
1- Em primeiro lugar o artigo admite que Santo Atanásio pode ter sido excomungado injustamente mas não concede, ao caso da excomunhão de Dom Lefebvre, o mesmo direito a admiti-lo. Em havendo um caso na história por que não poderia haver outro? Ademais a retirada da excomunhão dos 4 bispos ordenados em Ecône por Dom Marcel em 1988, por ordem de Bento 16, prova que podemos estar perante um caso de excomunhão injusta similar a que atingiu, hipoteticamente, Santo Atanásio.
2- O artigo assevera que Lefebvre se recusou a rezar a missa nova dando a entender que isto era um ato de rebeldia contra a autoridade mas vejamos:
- A Bula Quo Primum Tempore, do Papa São Pio V, canonizou o rito gregoriano – dita missa tridentina porque confirmada pelo Concílio de Trento mas que vem da era dos apóstolos tendo ganho forma definitiva na sua parte essencial na época do Papa Gregório Magno – nestes termos:
“Ordenamos que a Missa, no futuro e para sempre não seja cantada nem rezada de modo diferente do que está conforme este missal por nós publicado...em virtude de nossa Autoridade Apostólica...concedemos e damos o indulto seguinte: Doravante em qualquer Igreja se possa sem restrição seguir este missal com permissão de usá-lo livre e licitamente sem nenhum escrúpulo de consciência e sem que se possa incorrer em nenhuma pena, sentença e censura e isto para sempre...não sejam obrigados ( Bispos e Padres ) a celebrar a missa doutro modo...a presente Bula não poderá JAMAIS, EM TEMPO ALGUM, ser revogada nem modificada mas permanecerá sempre firme e válida.
Se alguém, contudo, tiver a audácia de atentar contra estas disposições saiba que incorrerá na indignação de Deus todo poderoso e de seus bem-aventurados apóstolos São Pedro e São Paulo”
Ora foi justamente nesta Bula que Dom Marcel se baseou para recusar a missa nova e foi justamente indo contra ela que Paulo VI ab-rogou a missa de sempre cometendo um ato ilegítimo pois o que um Papa liga na terra é ligado no céu e nenhum papa posterior pode desligar quando for da vontade do papa anterior a perpetuidade daquela decisão (é o caso da Bula Quo Primum Tempore). Portanto quem agiu como Lutero que se insurgiu contra a autoridade não foi Marcel mas o Papa Montini.
3- O artigo alega que Lefebvre afirmou que Roma tinha se tornado sede do Anticristo. Isto é falso pois Dom Marcel, para dizer isto, precisaria afirmar que o Papa havia apostatado da fé, colocando o trono pontifício nas mãos dum negador de Jesus Cristo. Mas não é o caso pois em 1977, 78, 79 e 82 Dom Marcel reafirmou reiteradas vezes que a situação da crise da Igreja era incerta e que, portanto, não era possível afirmar categoricamente a apostasia do Papa; vejamos:
18/03/77:
"Se o Papa fosse apóstata, herege ou cismático, conforme a opinião provável de alguns teólogos (se fosse verdadeira), o Papa não seria Papa e, por conseguinte, estaríamos na situação de Sede Vacante. Essa é uma opinião. Não digo que não possa ter alguns argumentos a seu favor... Porém, por ora creio que seria um erro seguir essa hipótese".
16/01/79:
“Enquanto não tenha a evidência de que o Papa não é Papa, tenho a presunção a favor dele. Não digo que não haja argumentos que possam pôr uma certa dúvida. Porém, é necessário ter a evidência: não é suficiente uma dúvida, inclusive se é válida. Se o argumento é duvidoso, não há direito de tirar conclusões que têm conseqüências imensas. Não se pode partir de um princípio duvidoso. Prefiro partir do principio de que há que defender nossa fé.”
29/06/1982:
"Também nós nos sentimos tentados de dizer: ‘Não é Papa, não pode ser Papa, se faz o que ele faz'. Ou senão, em troca, como outros que divinizariam a Igreja ao ponto de que tudo seria perfeito nEla, poderíamos dizer: 'Não é questão de fazer algo que se oponha ao que vem de Roma, porque tudo é divino em Roma e devemos aceitar tudo o que venha dali'. Quem assim diz procede como aqueles que diziam que Nosso Senhor era de tal maneira Deus que não lhe era possível sofrer, mas que todo aquilo era aparência de sofrimento, que na realidade não sofria, que na realidade seu Sangue não escorria, que não eram senão aparências que impressionavam os olhos de quem o rodeavam, porém não é uma realidade. O mesmo sucede hoje em dia com alguns que continuam dizendo: 'Não, nada pode ser humano na Igreja, nada pode ser imperfeito na Igreja'. Também esses se equivocam. Não admitem a realidade das coisas. Até onde pode chegar a imperfeição da Igreja, até onde pode chegar - diria eu - o pecado na Igreja, o pecado na inteligência, o pecado na alma, o pecado não coração e na vontade? Os fatos no-lo mostram”.
Por outro lado o artigo retira do devido contexto a fala de Dom Lefebvre na carta dirigida aos futuros Bispos escrita em 1987, conjuntura esta que é bem explicada por Dom Lourenço, conforme vai abaixo:
“Estando a Cadeira de Pedro e os postos de autoridade de Roma ocupados por anticristos, a destruição do Reino de Nosso Senhor alastra rapidamente no seio de seu Corpo Místico nesta terra, especialmente pela corrupção da Santa Missa, expressão magnífica do triunfo de Nosso Senhor pela Cruz – “Regnavit a ligno Deus” – e fonte de extensão do seu Reinado nas almas e nas sociedades.” - Carta de Mgr. Lefebvre aos futuros bispos [Nota de D. Lourenço: A expressão é forte, mas deve ser entendida sem preconceitos: Mgr. Lefebvre não diz que tal ou tal pessoa é o Anti-Cristo, e sim que os postos do Vaticano estão ocupados por anti-cristos, ou seja, autoridades que trabalham para a destruição da Igreja, e não para sua edificação. Nesse sentido lemos na 1ª Ep. de São João: "todo o espírito que divide Jesus não é de Deus; mas este é um Anticristo."]
Portanto Dom Marcel entendia que o papa pode se cercar de maus colaboradores e favorecer a ruína da Igreja sem comprometer sua infalibilidade pois há uma dimensão humana na Igreja. Uns dizem que a Igreja sendo tão divina não podemos ter um papa que favoreça a ruína então ou ele não é papa – como pensam os sedevacantes – ou ele é e devemos aceitar a ruína como verdade de fé – como pensam os conservadores. Não era desta forma que Dom Lefebvre pensava.
4- O artigo aduz que Lefebvre, ao fazer as consagrações de Ecône, “pecou por desesperança” na promessa duma autorização de Roma para ordenar um bispo da FSSPX a fim de dar sequência ao seu trabalho. Essa é outra falsidade pois:
- Dom Marcel clamou, por 20 anos, às autoridades romanas uma solução para a crise da fé sem sucesso. Alguém que pede, clama, suplica ao Papa, ao Cardeal Villot da congregação para a doutrina da fé, etc, medidas para resolver a crise pode ser apontado como alguém desesperançado nas autoridades? Dom Marcel foi, antes de tudo, paciente demais mesmo com os sinais de má vontade que vinham continuamente de Roma como as perseguiões a missa de sempre promovida pelo Bispo de Versalhes e de Bourges contra o Padre Lecareux, tirania perante as quais Roma não moveu um dedo.
- Quanto a carta de Ratzinger datada de 1987, esta impunha um cardeal visitador a FSSPX a fim de encontrar uma forma jurídica para a mesma, forma esta que seria baseada no código de direito canônico de 1983. O cardeal ficaria responsável por ordenar os futuros padres formados no seminário da FSSPX. Isso tiraria certa autonomia de Dom Marcel que, apesar disso, aceitou a proposta mostrando sua boa vontade. A carta estipulava que a FSSPX teria o direito de formar seus padres em seu “carisma” como se o trabalho da Fraternidade não se tratasse não da defesa da fé mas dum modelo arcaico de Igreja defendido por costume arraigado. Esse cardeal, além do mais, seria o garantidor da ortodoxia no seminário da FSSPX. Apesar de todas estas limitações Dom Lefebvre aceitou conversar para chegar a um termo. O Cardeal Gagnon foi recebido festivamente na Fraternidade em 1987 e ficou a esperança de que fosse ele o visitador. Isto levou a assinatura do protocolo de acordo em 05/05/88 onde ficava acertada a ordenação do bispo o que levou Dom Marcel a entregar a terna ( três nomes para Bispo). Logo após a assinatura Lefebvre passou a cobrar uma data para a definição do bispo. Mas Roma recusou apresentar o nome em 30 de junho, recusou entre 15 de julho e 15 de setembro alegando ser período de férias, recusou definição para início de novembro e para o Natal! Foi então que Dom Marcel percebeu ter sido enganado. Isso levou-o a decidir pelas consagrações. Lefebvre seguiu apostando paciente numa solução de Roma mas acabou traído apesar de sua boa vontade. Para quem ainda duvida que a hierarquia desejava enganar Dom Marcel basta lembrar do caso do Mosteiro do Barroux no qual o prior recebeu a oferta do Vaticano para que traísse Lefebvre e assinasse o protocolo no lugar dele ainda em 1988. Foi o que foi feito. Todavia o Barroux, que virou Fraternidade São Pedro, nunca recebeu o direito de ter um bispo e acabou vendo Dom Gerard, seu líder, celebrando a Missa de Paulo VI por exigência de Roma; na época do acordo as autoridades romanas davam a entender a Gerard que eles não precisariam reconhecer o Vaticano II e que tudo seguiria como antes mas não foi o que se deu. Quem estava movido de má vontade eram as autoridades romanas e não Dom Marcel.
Isto posto fica provado que Dom Marcel nem foi desobediente, nem rebelde nem desesperado mas fiel, leal e esperançoso. É frustra a acusação do catequista!