Clemente de Alexandria, mestre autorizado pela Igreja. |
O senhor Olavo de Carvalho, dito filósofo e católico, no seu curso de filosofia se distancia radicalmente do que diz Clemente de Alexandria, padre da Igreja, sobre a filosofia. Ele nos ensina como um católico deve exercitar a atividade filosófica e com que critérios.
Estrômates de Clemente de Alexandria
Tema da obra: fazer ver que a filosofia é, em si, uma boa
coisa pois foi querida por Deus.
Contexto da obra: Igreja de Alexandria no
século II DC. A mesma era formada por homens simples e sábios. Alexandria era
um centro cultural e havia na Igreja alexandrina da época muitos convertidos
que conheciam a filosofia grega em alto nível. Este é o caso de Clemente. Os
cristãos simples de Alexandria recriminavam Clemente por se dedicar a filosofia
propondo, no lugar disso, uma fé sozinha e nua não só de filosofia mas de
teologia ou qualuqer especulação.
O que explicava essa tendência simplorista era o exemplo dos gnósticos
que parecia provar o caráter nocivo da filosofia. Os defensores de tal tendência
estimavam que um cristão devia se afastar dela.
Clemente visa provar que a filosofia pode ajudar a fé.
Conteúdo da obra: Clemente começa falando
que Deus no AT fala de homens que foram cheios do espírito de sabedoria(Exôdo
28, 3). Sendo esse sentido um dom de Deus não se pode admitir que a filosofia,
que é sua obra, seja uma coisa ruim e condenável aos olhos de Deus.
Alguns objetavam que a filosofia tinha se tornado algo dispensável desde
que Deus substituiu-a pela fé. A isso Clemente respondia dizendo se tratar de
uma incompreensão do papel da filosofia na história.
Antes de Cristo havia a lei judaica, desejada por Deus. Por outro lado
havia os gregos sem fé nem lei, mas não sem recursos, pois tinham a luz da
razão natural que não só os julgava, como diz São Paulo, mas os preparava para
receber o cristianismo, como se pode ver lendo Platão. Deus não falava
diretamente aos filósofos como fazia com os profetas ao lhes dar uma revelação,
mas guiava-os indiretamente pela razão que é uma luz divina. Se Deus quis a
razão foi por que ela serve para alguma coisa. Todo o curso do saber humano são
dois rios: a lei judaica e a filosofia grega dos quais o cristianismo jorraria
como uma nova fonte. Clemente diz que há dois antigos testamentos e um novo. A
lei aos judeus, a filosofia aos gregos; a lei, a filosofia e fé aos cristãos.
Antes de Cristo a filosofia servia aos gregos para sua justificação, agora
continua servindo para prepará-los a fé e quando a obtiverem para defendê-la e
aprofundá-la.
Notemos que ela só pode ser útil contanto que se mantivesse em
seu devido lugar. A escritura diz para nos guardarmos da mulher estranha(
Provérbios 7, 5) e fazermos uso das
ciências profanas sem nelas nos determos. " Elas preparam, com efeito,
para receber a palavra de Deus e contêm o que, em tempos diferentes, foi dado a
cada geração em seu interesse; mas aconteceu que alguns, inebriados pela
beberagem das servas negligenciaram sua ama que é a filosofia. Alguns dentre
eles envelheceram no estudo da música, outros no da geometria, outros ainda no
da gramática, muitos no da retórica. Ora dos mesmo modo que as artes liberais
servem à filosofia, que é sua ama, a própria filosofia tem por finalidade
preparar a Sabedoria. A Sabedoria é senhora da filosofia como a filosofia é das
disciplinas que a precedem.". Vemos esboçar nesse trecho do Estrômates
a fórmula "philosophia ancilla theologiae".
Eis a imagem bíblica que Clemente usa: " Sara, esposa de Abraão
era estéril. Como não concebia permitiu que ele tomasse sua escrava egípcia,
Agar, na esperança que ele tivesse uma posteridade. A Sabedoria( Sara) que
coabitava com o fiel ( Abraão) era, portanto, estéril nessa primeira geração; e
ele queria que o fiel que tinha de progredir, se unisse primeiro a ciência do
mundo - pois é o mundo que o Egito significa alegoricamente - para gerar dela
Isaque, pela vontade da divina providência. Aquele que se instruiu primeiro nas
ciências pode se elevar até a Sabedoria, que as domina e de onde nasce a raça de
Israel. Abraão passou das verdades mais elevadas a fé e justiça que são de
Deus. Abraão diz a Sara " eis aí tua serva faz com ela o que quiseres"
pois ele so retém da filosofia do mundo o que ela tem de útil.
A filosofia consiste na busca da verdade e no estudo da natureza. O
senhor disse: eu sou a verdade. A ciência que precede esse repouso na verdade
que é a ciência de Cristo, exercita o pensamento, desperta a inteligência e
aguça o espírito para se instruir na suprema verdade. A filosofia é, para a fé,
uma auxiliar e um preparação. A fé e a filosofia tem raiz comum. O homem tem a
faculdade de conhecer ( phronesis). Quando pode conhecer os primeiros
princípios ela é pensamento( noésis); quando desenvolve esse pensamento em
raciocínios é ciência( gnose); se ela se aplica aos problemas da ação é arte(
tekhne); quando ela se abre à piedade, crê no Verbo e nos dirige para a prática
dos seus mandamentos. É por ser una que
a Sabedoria vai colocar ordem na filosofia. Como as bacantes despedaçaram o corpo
de Penteu, as seitas filosóficas quebraram a unidade natural da verdade: cada
uma guarda uma pedaço dela e se gaba de possuí-la inteira.
Assim impõe-se antes de mais nada um trabalho de eliminação: há certa
filosofia que o cristianismo não poderia assimilar pois é falsa. Por exemplo os
textos de São Paulo sobre as as loucuras dos sábios deste mundo podem ser todos
canalizados para Epicuro e seu hedonismo. O termo filosofia não designa nenhuma
doutrina particular, nem a de Platão ou Aristóteles, mas antes aquele
ensinamento de justiça e piedade com o qual concordam por sinal escolas assaz
diferentes. A fé cristã é princípio de seleção que só permite reter de cada
doutrina o que ela contém de verdadeiro e útil. Os dois mestres por excelência
serão Pitágoras, homem iluminado por Deus e Platão cuja filosofia se volta toda
para a piedade. A fé é senhora da filosofia como a filosofia é das artes
liberais.
Fonte: Etienne Gilson. Filosofia na Idade Média. Resumo das páginas 43 a
47.
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